Os Pontos de Cultura são a principal ação do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura. Com o intuito de preservar a cultura de raiz, fortalecendo as manifestações culturais dentro de seu território de origem, os Pontos de Cultura existem para preservar memórias e histórias.
Ponto de Cultura – A construção de uma política pública
Por Celio Turino Publicado:abril 6, 2010
I – Indo direto ao Ponto – Um Estado de novo tipo se forma quando ouvimos quem nunca foi ouvido
A aplicação do conceito de gestão compartilhada e transformadora para os Pontos de Cultura tem por objetivo estabelecer novos parâmetros de gestão e democracia entre Estado e Sociedade. No lugar de impor uma programação cultural ou chamar os grupos culturais para dizerem o que querem (ou necessitam), perguntamos como querem. Ao invés de entender a cultura como produto, ela é reconhecida como processo. Este novo conceito se expressou com o edital de 2004, para seleção dos primeiros Pontos de Cultura. Invertemos a forma de abordar os grupos sociais, o Ministério da Cultura diz quanto pode oferecer e os proponentes definem, a partir de seu ponto de vista e de suas necessidades, como aplicarão os recursos. Em algumas propostas o investimento maior vai para a adequação física do espaço, em outras, para a compra de equipamentos ou, como na maioria, para a realização de oficinas e atividades continuadas. O único elemento comum a todos é o estúdio multimídia, que permite gravar músicas, produzir audiovisual e colocar toda a produção na internet.
Ponto de Cultura é um conceito de política pública. São organizações culturais da sociedade que ganham força e reconhecimento institucional ao estabelecer uma parceria, um pacto, com o Estado. Aqui há uma sutil distinção: o Ponto de Cultura não pode ser para as pessoas, e sim das pessoas; um organizador da cultura no nível local, atuando como um ponto de recepção e irradiação de cultura. Como um elo na articulação em rede, o Ponto de Cultura não é um equipamento cultural do governo, nem um serviço. Seu foco não está na carência, na ausência de bens e serviços, e sim na potência, na capacidade de agir de pessoas e grupos. Ponto de Cultura é cultura em processo, desenvolvida com autonomia e protagonismo social.
A gestão do Ponto de Cultura começa a partir do convênio que é assinado entre governo e proponentes, definindo responsabilidades (acesso público ao Ponto, trabalho colaborativo, compartilhamento de decisões com a comunidade) e direitos (regularidade no repasse de recursos, acompanhamento e capacitação, acesso público aos bens e serviços adquiridos com os recursos repassados etc.). Como o Ponto continua desenvolvendo suas atividades, independente do convênio, a dinâmica de cada organização precisa ser respeitada. Alguns são ONGs voltadas para a ação socioeducativa; outros, escolas de samba, associações de moradores, quilombolas, aldeias indígenas, grupos de teatro, conservatórios, núcleos de extensão universitária, museus, cooperativas de assentamentos rurais. Cada qual com sua especificidade e forma de organização.
Durante o processo de implantação e acompanhamento dos Pontos há tensão. De um lado, os grupos culturais, apropriando-se de mecanismos de gestão e recursos públicos; de outro, o Estado, com normas de controle e regras rígidas. Essa tensão, de certo modo inevitável, cumpre um papel educativo que, a longo prazo, resultará em mudanças em ambos os campos. O objetivo seria uma burocracia mais flexível e adequada à realidade da vida, assim como um movimento social mais bem preparado no trato das questões de gestão, capacitando-se para melhor acompanhar as políticas públicas e o planejamento de suas atividades específicas.
Essa interação, que no início é difícil, exercita um novo modelo de Estado, diferente dos até então conhecidos. Nos padrões conhecidos, temos que optar por formas pesadas de Estado, de caráter intervencionista e burocrático, ou então o Estado mínimo, com sensibilidade às necessidades sociais igualmente mínima. Um Estado de “novo tipo”, que compartilha poder com novos sujeitos sociais, ouve quem nunca foi ouvido, conversa com quem nunca conversou, vê os invisíveis. Por isso ampliado, presente e ao mesmo tempo leve, como o ar.
“Nós, o povo de santo, aqui em Pernambuco, estamos com a autoestima levantada [...]. Os terreiros de candomblé sempre foram tratados com intolerância. Quantas vezes fomos saqueados pela polícia, que tirava todos os nossos fundamentos. No porão do Palácio do Campo das Princesas [sede do governo do estado] estão jogados, feito pó, todos os nossos fundamentos, os ibás [arranjos em cerâmica e panelas para oferendas], os ilu [instrumentos musicais, atabaques], os assentamentos [pedras]. Agora, quando a polícia aparece, nós dizemos: ‘O que vocês querem? Somos Ponto de Cultura, reconhecidos pelo governo federal’. E a zabumba, que foi dos nossos avós e tem mais de 150 anos, pode tocar a sambada, a ciranda, o samba de coco, o maracatu e todos os encontros de brincantes” (Beth de Oxum – Ponto de Cultura Memória e Produção da Cultura Popular – Coco de Umbigada, Olinda, Pernambuco).
Há risco de, nesse processo, os movimentos culturais irem se institucionalizando, perderem a espontaneidade ou até mesmo serem cooptados? Há. Diante dessa perspectiva, a cultura política e o elemento de emancipação surgem como fundamentais para evitar esse processo de cooptação. Aqui, entenda-se por cooptação a contaminação do “mundo da vida” (cultura, sociedade, pessoa) pelo “mundo dos sistemas” (Estado, mercado). Em contraponto precisamos encorajar uma ação que desenvolva e fortaleça competências do sujeito (coletivo e individual), o reencontro com as pessoas e a sua capacidade de agir enquanto agentes históricos. Assim, ampliando a capacidade de interpretação do mundo, reequilibrando ordens legítimas que regulamentem a relação entre grupos sociais e garantam a solidariedade entre eles, poderemos abrir um novo canal de entendimento (intercompreensão) e afirmação das identidades sociais e pessoais.
O Ponto de Cultura pode ser (ao menos esse é o desejo) um ponto de apoio a romper com a fragmentação da vida contemporânea, construindo uma identidade coletiva na diversidade e na interligação entre diferentes modos culturais. Quem sabe um elo na “ação comunicativa”, como na teoria de Jürgen Habermas.
A equação em que se sustenta a teoria dos Pontos de Cultura foi construída a partir da observação empírica, com casos vivenciados. E pode ser expressa em uma equação simples, em que a soma de Autonomia + Protagonismo resulta um contexto favorável ao rompimento de relações de dependência, ou assistencialismo, tão comuns na aplicação de políticas governamentais. Este novo contexto representa um avanço em políticas públicas e pode ser potencializado se, ao resultado desta soma, for agregada a articulação em rede. Quanto mais articulações e redes houver, mais sustentável será o processo de empoderamento social desencadeado pelo Ponto de Cultura. Com esta equação percebe-se que um Ponto de Cultura só se realiza plenamente quando articulado em rede.
[trecho do livro Pontos de Cultura - O Brasil de Baixo Para Cima]